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Elizabete Passos
A tarde da última quarta-feira (3) marcou mais do que uma cerimônia de encerramento na Universidade Federal de Sergipe (UFS). No auditório da Didática V, mulheres de diferentes territórios, trajetórias e organizações sociais celebraram a formatura do curso “Justiça de gênero, territorial e climática: formação de escutadeiras, defensoras populares dos corpos-territórios”. O evento simbolizou a consolidação de uma experiência político-pedagógica que colocou a escuta no centro das lutas por direitos, cuidado e justiça socioambiental.
Promovido pelo Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC), por meio do Observatório Popular das Violências e pela Vida das Mulheres de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe (OPOPVida/UFS), o curso reuniu, ao longo de seis meses, mulheres do Movimento de Marisqueiras de Sergipe (MMS), da Juventude do Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais, além de mulheres indígenas, de terreiro e a equipe de pesquisadoras do Programa.

Mesa de abertura da formatura de Escutadeiras. Da esquerda à direita: Profa. Dra. Lívia Cardoso, coordenadora do Observatório, Profa. Dra. Sandra Oliveira, Coordenadora do PEAC e Profa. Dra. Nelmires Ferreira, representante da Pró-Reitoria de extensão (PROEX/UFS) | Elizabete Passos
A mesa de abertura contou com a Profa. Dra. Lívia Cardoso, coordenadora do Observatório; a Prof. Dra. Sandra Oliveira, representando a coordenação geral do PEAC; e a Profa. Dra. Nelmires Ferreira da Silva, pela Pró-reitora de Extensão (PROEX/UFS), responsável pela certificação das formandas. Mais do que diplomas, a cerimônia celebrou saberes compartilhados, vínculos criados e tecnologias de existência construídas coletivamente.
Da escuta como sobrevivência à escuta como método político
Segundo a professora Lívia Cardoso, a proposta do curso nasce de um acúmulo de articulações entre o Observatório, o Movimento de Marisqueiras de Sergipe (MMS), o coletivo Promotoras Legais Populares e instituições como a Themis – Justiça de Gênero e Direitos Humanos (RS) e a Clínica Feminista Antirracista e Interseccional da UFRGS. O ponto de partida foi a compreensão de que as violências sofridas pelas mulheres são indissociáveis dos processos de expropriação e exploração de seus territórios.
Esse percurso ganhou força em 2024, durante o “Intercâmbio das Águas”, realizado em Porto Alegre, no mesmo ano da maior enchente já registrada no Rio Grande do Sul (relembre matéria). O contato com mulheres gaúchas, seus modos de vida e estratégias de luta inspirou a criação de um curso que dialogasse com a realidade sergipana, conectando gênero, saúde, território e justiça climática.
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Intercâmbio das Águas reuniu mulheres marisqueiras de Sergipe e mulheres do sul | Assessoria de Comunicação
“O objetivo foi criar um espaço político-pedagógico de costura entre experiências de escuta e organização entre mulheres, atualizar conhecimentos interdisciplinares e fortalecer o acesso a bases legais que subsidiem o enfrentamento às opressões de gênero, raça e classe”, explica Lívia. Mais do que transmitir conteúdos, o curso buscou reconhecer e potencializar metodologias comunais de cuidado já existentes nos territórios.
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Mulheres realizam atividades em grupo durante Curso de Escutadeiras | Assessoria de Comunicação
Saberes populares, corpo e território no centro da formação
A composição entre saberes acadêmicos e populares foi uma das premissas fundamentais do curso. Inspiradas na educação popular, nos feminismos comunitários e nas epistemologias decoloniais, as metodologias foram construídas de forma colaborativa, incorporando cantos, narrativas orais, dramatizações, produções dos territórios e práticas corporais.
“A aprendizagem não é apenas intelectual. Ela precisa atravessar o corpo, os afetos e os sentidos”, explica Luísa Horn, pesquisadora de pós-doutorado do Observatório. Ao longo do curso, temas como feminismos e lutas territoriais, violências contra as mulheres, saúde, acesso a direitos, escuta, cuidado e organização em rede estruturaram os encontros.
Para a pesquisadora, as participantes já eram escutadeiras antes mesmo da formação. “Essas mulheres escutam a maré, o campo, as matas e as dores que atravessam o cotidiano. O curso afinou essas escutas para que produzam cuidado em rede, fortalecimento político e acesso a direitos”, explica Luísa.
Transformações vividas e compartilhadas
Durante os encontros, a escuta foi reconhecida como ferramenta de luta. De acordo com Lívia Cardoso, foi possível observar mudanças concretas nas relações entre as participantes, como o reposicionamento diante do sofrimento das outras mulheres, com menos culpabilização individual e mais compreensão coletiva.

Da esquerda para direita: Luísa Horn, pesquisadora pós-doc, Profa. Dra. Michele Vasconcelos, a formanda Elaine Lima Santos, e as pesquisadoras Clarice Lima, Camilla Albuquerque, e Lorena Andrade.
Esse impacto aparece também nos relatos das formandas. Para Elaine Lima Santos, marisqueiras e catadora de mangaba do povoado Aguilhadas, em Pirambu, a formação foi um divisor de águas. “Aprendi o valor do ouvir, do partilhar e do caminhar junto. Pretendo criar, no meu território, um espaço de acolhimento, com escuta e presença, sem julgamentos”, afirma.
Maria Eliete Santos, artesã de Aracaju, destaca a força dos espaços coletivos entre mulheres negras e a importância do tempo do outro. “A formação me levou a rever posicionamentos e a compreender que pessoas com dores semelhantes vivem processos diferentes”, reflete.
Zuleide Batista dos Santos, marisqueira do povoado Aguilhadas, em Pirambu, resume a experiência como um fortalecimento pessoal e coletivo. “Passei a me enxergar mais forte e preparada para apoiar outras mulheres em situações de vulnerabilidade”, explicou.

Zuleide Batista dos Santos, marisqueira do povoado Aguilhadas com seu certificado de formatura. | Elizabete Passos
Um dos momentos mais simbólicos da formatura foi o depoimento de Vanessa Conceição, mulher negra, candomblecista e moradora de Simão Dias. Para ela, a escuta é um valor ancestral. “Venho de uma cultura em que escutar é fundamental. O curso reafirmou a oralidade e a sabedoria dos mais velhos. Nós, mulheres negras, precisamos escutar umas às outras para colocar nossas vivências em prática”, afirmou.
Receber o diploma na UFS também teve um significado histórico. “É muito simbólico receber um certificado, um diploma de um curso, sobretudo as mulheres negras, que temos um passado de ancestrais que não tiveram oportunidade de estudar. Eu sou a primeira pessoa que tem uma formação de ensino superior na minha família, então quando eu subi, eu não subi sozinha. Fui muito acompanhada por elas, pelas minhas ancestrais”, destaca.

Vanessa Conceição recebe das pesquisadoras do PEAC o certificado de formatura | Elizabete Passos
Próximos passos e desafios
Com a formatura, encerra-se o ciclo de atividades do Observatório em 2025, mas inicia-se uma nova etapa. As escutadeiras elaboraram planos de ação territorializados, que serão desenvolvidos ao longo de 2026 com acompanhamento da equipe do Observatório. Entre os próximos produtos, estão a elaboração de um documento com princípios e diretrizes do ofício de escutar-defender corpos-territórios e uma cartilha com metodologias construídas durante o curso.
O desafio, segundo as pesquisadoras, é manter as redes aquecidas, fortalecer as políticas públicas existentes, sem perder de vista as especificidades das comunidades tradicionais e garantir apoio continuado às mulheres em seus territórios.
A realização do PEAC é uma medida de mitigação exigida pelo licenciamento ambiental federal conduzido pelo IBAMA.
O Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC) incentiva o fortalecimento dos Territórios de vida dos Povos e Comunidades Tradicionais. A realização do PEAC é uma exigência do licenciamento ambiental federal, conduzido pelo Ibama.